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Já nem me conheço

quarta-feira, março 30, 2011


Cantar do Amigo Perfeito






Passado o mar, passado o mundo, em longes praias, 
de areia e ténues vagas, como esta 
em que haverá de nossos passos a memória 
embora soterrada pela areia nova, 
e em que sobre as muralhas quanta sombra 
na pedra carcomida guarda que passámos, 
em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas esta, ó meu amigo? 

Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos 
da alheia juventude, impudica ou severa, 
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se, 
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas; 
e o meu e o teu olhar guiando-se leais, 
de nós um para o outro conquistando 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas, diz, ó meu amigo? 

Também aqui relembro as ruas tenebrosas, 
de vulto em vulto percorridas, lado a lado, 
numa nudez sem espírito, confiança 
tranquila e áspera, animal e tácita, 
já menos que amizade, mas diversa 
da suspeição do amor, tão cauta e delicada 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda as recordas, diz, ó meu amigo? 

Também aqui, sorrindo em branda mágoa, 
desfiámos, sem palavras castamente cruas, 
não já sequer os íntimos segredos 
que o próprio amor, porque ama, não confessa, 
nem a vaidade humana dos sentidos, mas 
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas, diz, ó amigo? 


Partiste e foi contigo a juventude. 
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo, 
e o terror de não ser minha estátua jacente 
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância 
desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! - 
que só do amor ou só da terra haja saudade. 
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
tu sabes que a levaste, ó meu amigo? 

Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

segunda-feira, março 28, 2011

A saúde mental dos portugueses

Por Pedro Afonso, psiquiatra
Público, 21/06/2010

Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência, urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família. Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual, tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.

De uma memória tão antiga


dizer Dezembro como se o mar tocasse a voz

ou dizer uma rosa rubra atravessada

por lábios de luz.

dizer o oriente de uma estrela

e vestir a pele de um poema.

mas a palavra é uma criança tolhida de frio

nos cabelos nevrálgicos que a árvore segura.

e assim amanhecemos, tardios e ébrios

no carrossel que orquestra a cidade

com tambores de solidão.

dizer corpo e ser ponte sábia para o outro lado

e a vida ser tão simples como a mão

que toca a pele da sílaba

de uma memória tão antiga

como as solas de uma infância gasta.

dizer amor, esse fósforo que incendeia

e ser fogueira na nervura da palavra.

despir o olhar desta erosão de distância.

agasalhar os pés e resguardar

o dorso lírico do sangue

como se a um poema de Natal bastasse

o verde inflamado de um arbusto:

o labor inteiro do meu coração de terra.

Poema de Luísa Henriques