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Já nem me conheço

domingo, janeiro 13, 2019

«Eu tenho passado bem de saúde e o espírito tem estado curiosamente menos mal-disposto. Ainda assim uma vaga inquietação anda a torturar-me, uma coisa a que eu não posso chamar senão uma comichão intelectual, como se eu fosse ter bexigas na alma. É só nesta linguagem absurda que eu lhe posso descrever o que sinto. Tudo isto, porém, não se aparenta propriamente com aqueles estados tristes de espírito, de que às vezes lhe falo, e em que a tristeza é caracterizadamente uma tristeza sem causa. Este meu estado de alma actual tem uma causa. Em torno de mim está-se tudo afastando e desmoronando. Não emprego estes dois verbos no sentido entristecedor. Quero apenas dizer que na gente com quem lido se estão dando, ou se vão dar, mudanças, acabares de períodos de vida, e que tudo isto — como a um velho que vê morrerem em seu redor os seus companheiros de infância, a sua morte parece próxima — me sugere não sei de que misteriosa maneira, que a minha deve, vai, mudar também. Repare que eu não creio que esta mudança vá ser para pior; creio o contrário. Mas é uma mudança, e para mim mudar, passar de uma coisa para ser outra, é uma morte parcial; morre qualquer coisa de nós, e a tristeza do que morre e do que passa não pode deixar de nos roçar pela alma.

Veja: amanhã vai para — não a, mas para — Paris o meu maior e mais íntimo amigo. A tia Anica (veja a carta dela) não é improvável que vá breve para a Suíça com a filha, casada então. Vai para a Galiza, para lá estar bastante tempo, um outro rapaz, muito meu amigo. Passa a viver no Porto um outro rapaz que é, depois do primeiro que lhe citei, o meu amigo mais próximo. Assim, em meu redor humano, tudo se organiza (ou se desorganiza) de modo a ir-me, não sei se isolando, não sei se chamando para um novo caminho que não vejo. Mesmo a circunstância de eu ir publicar um livro vem alterar a minha vida. Perco uma coisa — o ser inédito. E assim mudar para melhor, porque mudar é mau, é sempre mudar para pior. E perder um defeito, ou uma deficiência, ou uma negação, sempre é perder. Imagine a Mamã como não viverá, de dolorosas sensações quotidianas, uma criatura que sente desta maneira!
Que serei eu daqui a dez anos — de aqui a cinco anos, mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos — dizem-o vendo o que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (se não eu não citava o que eles dizem…) Mas sei eu ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.»
[cópia duma carta para Pretória]
5/6/1914
Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Livro(S) do Desassossego / Fernando Pessoa; edição de Teresa Rita de Lopes. - São Paulo: Global, 2015.

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